“De hora em hora o SBT informa os resultados parciais da telesena”. Era assim que o locutor Lombardi apresentava números do produto criado por Silvio Santos. Ou seja, o tempo todo o tema retornava na mente dos telespectadores, reforçando sua presença. Vamos então adaptar a famosa frase para o momento do futebol: “De semana em semana o futebol brasileiro resolve falar fair play financeiro”. E lá vamos nós, depois de tantos colunas e debates, trazer novamente este tema. Agora, como Flamengo.
Nesta semana a reclamação da vez veio do presidente do Flamengo, Rodolfo Landim. Após a derrota da sua equipe para o Botafogo no Campeonato Brasileiro, eis que o mandatário do clube da Gávea reclamou num grupo de sócios do clube, dizendo “Sejam bem-vindos aos tempos de SAF sem fair play financeiro”.
Pronto. Um monte de gente mal-humorada e de bode com o Flamengo caiu em cima da declaração do dirigente. Afinal, “enquanto ganhava não pedia fair play financeiro”. Como diz um sticker que circula pelo whatsapp, “Esta certo? Não está. Mas também não está errado”.
Fair play financeiro no Flamengo… e no futebol
Fair play financeiro como conhecemos tem repercussão maior no mundo do futebol após a introdução do tema nas regras da UEFA, em 2010, com funcionamento pleno em 2011, mas em fase de adaptação dos clubes.
Antes, apenas a Bundesliga tinha um sistema mais cuidadoso, que nasceu em 1962, e havia algumas ações tímidas na Itália, onde os clubes faliam como qualquer empresa, mas sem controles externos.
Na Espanha o sistema começou em 2013, como contrapartida ao ajuste de dívidas que a liga patrocinou. Ou seja, o tema só passou a ser relevante no mundo do futebol no início da década passada, de forma que para dizer “quando os clubes gastavam e se endividavam ninguém pedia fair play financeiro”, é precisar analisar a cronologia correta.
Mas voltemos ao Flamengo e ao futebol brasileiro está sempre atrasado – vide nossa liga que nunca sai do papel – e pedir que fizessem algo que nem existia tem uma certa desonestidade intelectual embutida.
Caderno de licenciamento no Brasil
Em 2016 fui convidado a visitar a CBF por conta do relatório anual sobre finanças dos clubes de futebol – atual Relatório Convocados.
O então diretor de registros me apresentou o caderno de licenciamento de clubes da UEFA e perguntou: “Conseguimos implementar no Brasil um controle financeiro como eles fazem?”. A resposta foi afirmativa, mas indiquei que havia um trabalho inicial de padronização de informações, qualificação das informações prestadas, e só depois seria possível pensarmos num sistema de controles. Isso é história, e estamos falando em 2016.
Entre 2018 e 2019 o modelo foi construído, com participação dos CFOs de Internacional, Flamengo e São Paulo. Os números de 2019 foram testados e apresentados aos presidentes dos clubes. Apenas um deles – Guilherme Bellintani – mostrou-se favorável à adoção. Inclusive porque ele, publicamente, defendeu o tema. Outros foram contrários, porque isso “feria a liberdade de gestão”, como se gastar de forma desenfreada, atrasar pagamentos e fazer dívidas impagáveis fosse algo defensável.
Menos eficiência
Tivemos uma pandemia, reajustamos o modelo, e a verdade é que nunca foi adiante. Enquanto isso, para voltarmos ao presidente Landim, ele se empenhou na aprovação da Lei do Mandante, pois entendia que seria benéfica par seu clube, e jamais abraçou a ideia de desenvolvermos um sistema de fair play financeiro. Afinal, o que interessava era a possibilidade de ganhar mais com a TV, e não regularmos o mercado em busca de eficiência.
Nesse meio de caminho, tivemos a Lei das SAFs e a aprovação da Lei Geral do Esporte, que é uma soma de regras soltas, e que no Artigo 188 obriga a implantação de um sistema de fair play financeiro, definindo as diretrizes básicas sobre o tema:
Parágrafo único. O regulamento disposto no caput deste artigo deverá prever regras e sanções referentes, mas não limitadas, a:
I – equilíbrio financeiro, patrimônio líquido e níveis de endividamento;
II – limites financeiros para contratação de atletas por temporada;
III – limites para aportes financeiros de acionistas; e
IV – garantia de continuidade operacional mediante auditoria externa.
Equilíbrio financeiro
Isso tudo já existia no sistema que foi criado para a CBF, e posteriormente no sistema criado para a Libra.
Em síntese: é preciso forçar os clubes a operarem com equilíbrio financeiro, que é o primeiro e mais importante objetivo do sistema.
Depois, limitar aportes financeiros de acionistas. Está na lei.
Interesses únicos
Volto aos debates da semana. O posicionamento do presidente Landim pode ser questionado por alguns motivos. Primeiro, porque como líder de uma indústria deveria ter se posicionado pelo seu desenvolvimento antes, mas optou sempre em defender apenas os interesses do seu clube.
Segundo, a gestão esportiva do Flamengo é bem questionável. A distância financeira é tamanha que por mais que alguém resolva derramar dinheiro sem lastro, isso dura pouco.
O Atlético-MG fez isso e durou apenas um ano, pois não há dinheiro infinito. Mas reclamar dos outros ajuda a encobrir suas deficiências.
A posição dele está correta, só o timing é que ficou estranho. “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, nos lembra Ortega y Gasset.
Tornar o futebol brasileiro saudável
Isso não alivia a situação de quem ataca a necessidade do fair play financeiro, especialmente quem ignora o objetivo central do sistema: fazer com que o futebol seja saudável, os clubes não atrasem salários, encargos, impostos, que paguem as contratações em dia.
E, por favor, em 2024 não cabe mais desconhecer o objetivo do sistema. Exceto quem é profundo como um pires.
Controle do dinheiro
O movimento seguinte poderá ser controlar dinheiro no Flamengo e em qualquer outro time.
Na França não há controle rígido de dinheiro aportado pelos acionistas, mas ainda assim os clubes quebram, porque nem todo acionista tem dinheiro para bancar extravagâncias eternas. Mesmo o PSG está precisando vender atletas para equilibrar as contas. O Bordeaux acabou, o Lyon está em apuros, precisando vender jogadores.
Na Inglaterra também não há controle, mas a maioria dos clubes tem donos que atuam dentro de limites razoáveis, porque ninguém quer perder dinheiro, exceto o Chelsea, cuja gestão é completamente sem controle e lógica.
Na Itália foi aprovada uma lei que cria um órgão externo para controlar os clubes, e na Espanha a LaLiga é duríssima no controle de gastos. Aliás, o clube de maior receita no mundo é uma associação, sem dono rico para colocar dinheiro, mas como uma visão corporativa.
Ambiente perdulário do futebol
É cada vez mais importante voltarmos a este tema, seja para o Flamengo, seja em qualquer outro clube. Num ambiente perdulário como o futebol, é fundamental trabalhar na preservação dos clubes, porque o dono, quando cansa da brincadeira, vai embora e deixa o problema para trás, como fazem os dirigentes das associações.
Quem vai bancar essa ideia? Não sei. Só não dá para fingir que ela não é necessária, nem defendê-la apenas quando interessa.