A edição impressa do jornal Folha de S.Paulo do primeiro dia do ano de 1994 não poderia (quem poderia?) prever o que seria aquele ano. Haveria, claro, o lançamento e consolidação inicial do Plano Real. Mas 94 iria além. Muito além. Numa tacada só, o Brasil viveria momentos inesquecíveis. Perderia para sempre Ayrton Senna, mas venceria a Copa do Mundo de futebol após 24 anos de um incomodo jejum.
Assim, o jornal naquele início de 1994 noticiava que a tecnologia, como o óculos para videogame, marcava os novos produtos a serem lançados e um relatório listava 24 políticos envolvidos no caso do Orçamento.
Mas ninguém poderia prever o que viria pela frente. Então, confira a seguir fatos marcantes de 1994. O ano que também não terminou.
A vida em 1994
Reportagem publicada pela Inteligência Financeira em maio deste ano por Isabella Carvalho mostrou como era a vida dos brasileiros comuns no período final da hiperinflação. Uma das entrevistadas, por exemplo, Nathalia Fuga, lembrou sobre uma simples ida ao supermercado na época em que os preços mudavam diariamente.
“Ir para o supermercado era quase um evento. Me lembro que comprávamos muito. Muitas latas de óleo, pacotes de arroz, produtos de limpeza. Era comum, por exemplo, encher dois carrinhos”, contou a entrevistada.
E não era incomum, por exemplo, encontrar nos corredores desses mesmos supermercados funcionários com uma maquininha em mãos. Estranha, parecia um revólver, disparava etiquetas nos produtos com novos preços. E etiquetava, e etiquetava, e etiquetava…
Com a inflação correndo os salários, era difícil planejar a vida. Viagens para o exterior? Era difícil? Trocar o carro exigia esforço. Uma ida ao restaurante era um luxo, um programa esporádico.
Então, se a situação era difícil para a classe média, era pior para quem não tinha emprego com carteira assinada ou não era bancarizado. A inflação era um imposto e tanto para os mais pobres.
A cultura em 1994
Se a coisa ia mal no dia a dia, a cultura musical passava por um período efervescente. 1994 foi o ano do lançamento, por exemplo, do histórico álbum ‘Da lama ao Caos’, de Chico Science e Nação Zumbi. Expressão mais importante do movimento Mangue Beat, a banda não se engana ao escrever no Instagram, tanto tempo depois, que trata-se de “um disco histórico – e fundamental – tanto na música brasileira como mundial”.
É deste álbum a música ‘A cidade’, sucesso absoluto de veiculação em rádios e também na MTV Brasil, o canal de música referência para os jovens da época.
Era simples, era visceral. Era a música brasileira para além da tropicália e dos Novos Baianos. Moderna, sem perder a essência do mangue. ‘A cidade não para, a cidade só cresce, o de cima sobe e do baixo desce’. Simples, acessível. Direta.
As mais tocadas
Mas para além do Mangue Beat, de acordo com a Wikipédia, era o pagode que tocava forte no Brasil. É desse ano o lançamento do segundo disco do Exaltasamba: ‘Encanto’. O grupo Katinguelê lançava ‘Meu Recando’. E Negritude Júnior colocava na praça o disco ‘Deixa Acontecer’.
O disco de vinil ainda circulava, mas a novidade mesmo, o que todo mundo queria, era comprar o moderno CD.
Alguns anos depois, por volta de 1996, 1997, com o Plano Real já consolidado, um CD custava menos de R$ 20. Era um bom preço. Era um bom tempo.
A morte de Ayrton Senna
No entanto, o que marcou o ano de lançamento do Plano Real foi mesmo o esporte. Para o bem e para o mal. Pouco tempo antes da Copa do Mundo, o piloto tricampeão de Fórmula 1 Ayrton Senna morreu durante uma corrida em Ímola, na Itália.
É daqueles acontecimentos que mobilizam o país.
Todo mundo que viveu à morte de Tancredo Neves sabe onde estava quando foi anunciada a morte do presidente que não assumiu o país na década de 1980.
Comoção nacional
Da mesma forma, todo mundo sabe o que estava fazendo quando o carro do piloto brasileiro se espatifou em um muro.
Provavelmente, você estava na frente da televisão vendo tudo ao vivo.
Acertei?
Era 1º de maio de 1994. No dia seguinte, uma segunda-feira, a manchete daquele mesmo jornal dizia apenas: ‘Acidente mata Ayrton Senna’.
O noticiário ocupava a maior parte da capa do jornal, o que era algo raro e dedicado a acontecimentos trágicos como aquela morte.
Romário, o cara
Pouco tempo depois, muito pouco tempo depois, o Brasil se mobilizou novamente.
Agora, para assistir a Copa do Mundo, disputada pela primeira vez nos Estados Unidos. O Brasil havia se classificado com sofrimento. Tinha perdido para a Bolívia, a primeira derrota da história em eliminatórias, e classificara-se após uma vitória na última rodada da seletiva contra o Uruguai no velho Maracanã (muito melhor que o atual) lotado.
Romário salvara a pátria de chuteiras e acabara com o jogo que credenciou o Brasil para o mundial.
Por isso mesmo, a seleção comandada por Carlos Alberto Parreira era cercada de desconfiança pela população.
Rumo ao tetra
A pressão era enorme. Mas o Brasil venceu a Rússia, venceu Camarões. Empatou já classificado com a Suécia na última rodada da fase de classificação.
Depois, em pleno 4 de julho, a data da independência norte-americana, venceu os Estados Unidos com um jogador a menos.
Ganhou de forma emocionante da Holanda por 3 a 2 após estar vencendo por 2 a 0 e sofrer o empate.
Pois é esse o jogo em que Bebeto ‘nina’ o filho que havia acabado de nascer na comemoração de um dos gols. Na semifinal, supera de novo a Suécia com um gol de cabeça do baixinho Romário.
Tudo conspirava a favor.
A Copa do Mundo é de novo nossa
O resto é história. Baggio chuta na lua (ou no sol escaldante da Califórnia) o último pênalti, Galvão Bueno, narrando o jogo para a TV Globo, não para de gritar: ‘É tetra!’.
Enquanto está abraçado a Pelé, o craque da última conquista 24 anos antes, no México.
Um amigo meu pulou numa lagoinha rasa, e provavelmente imunda, que havia nas imediações da minha casa pra comemorar. Mas essa é outra história.
A vez do real
Logo o ano terminaria com a seguinte manchete na Folha: ‘Banespa e Banerj sofrem intervenção’. Era o Plano Real se consolidando.
Mas, apesar de ter acabado, como o livro em que Zuenir Ventura relata o ano de 1968, 1994 também não terminou até hoje.
Ou será que acabou?